domingo, 3 de abril de 2022

Pedaço da minha alma que se fez carne e pôs-se no mundo

 

"Mãe, olha! O Abaporu da Tarsila!"
Das surpresas que pode te proporcionar um filho. Nesse caso, o meu, aos 4 anos.



(texto escrito depois de assistir o vídeo sobre filhos e paternidade do Programa Papo de Segunda, com Fábio Porchat, Emicida, Francisco Bosco e João Vicente - link abaixo)



A frase que dá título a esse texto eu criei enquanto convivia com meu filho nos primeiros meses de vida dele. Eu criei a frase por causa da minha necessidade de nomenclaturar a gigantesca avalanche de sentimentos e emoções que surgiu em mim com a chegada dele na minha vida. 

Na frase ficou implícito não só o amor desmedido, não só o apego, a necessidade de aproximação, de proteção, mas também todo o desespero da impossibilidade de controle sobre um pedaço que é parte de você, mas não é você. 

 

Filho é um pedaço de você que vai pro mundo e você não tem nenhum controle sobre ele. 

 

Se eu tivesse começado a estudar Psicanálise antes de ser mãe,

eu teria descoberto que esse descontrole não acontece só depois do parto, ou do corte do cordão umbilical, que é quando a mãe ingenuamente pensa: 

AaagóóracabôAaagóóórameeeu Dêusss... Agora não tem mais jeito. Saiu. Tá no mundo! Eu não tenho mais como proteger. Misericórdia, senhor, o que vai ser de mim? E se bater um vento, e se eu dormir e se eu morrer... Será que ele tá respirando? Visita nem pensar! Ninguém toca no meu filho! E esse choro, senhor, é de quê? É de fome, é de sono, é de dor, o que é?” 

 

E isso é só o começo... 

A descoberta de que sua falta de controle existe desde sempre é “ofertada” por Freud e a apresentação que ele faz de um inconsciente maldito e inacessível - Sim! É a maior parte da sua mente e ela é “INÁÁ-cessível” (aquilo que nós não acessamos tem o “CO-MAN-DÔÔ” das nossas decisões - música do filme “Psicose”)! 

Depois vem Keleman falar sobre a ligação desse inconsciente com as nossas emoções. E as emoções influenciam nada mais nada menos que a formação das células que formam o nosso corpo e também definem como vamos reagir ao mundo (TENTA RACIOCINAR SOBRE ISSO SEM ELOUQUECER). 

Daí chega Reich para te dizer que as emoções formam a sua mente e, junto com a genética (que você também não escolhe), também formam o seu corpo. OU SEJA, você nunca teve controle consciente nem sobre você, avalie sobre o ser que veio ao mundo por meio de você. Daí você pode me dizer: 

 

“Mas saber isso não diminui nada os meus medos de ser pai ou mãe!” 

 

Então... Eu sei – riso nervoso. 

Porque filho é uma incógnita mesmo e isso por si só já é desesperador. É um “negócio” que, teoricamente (e tudo na teoria é maravilhoso), é você que está fazendo. Então, meio que você se responsabiliza por aquilo, sabe? E tem que se responsabilizar mesmo! Afinal, o filho é seu... Só que, em boa parte do processo (boa parte mesmo, digamos assim, numa parte bastante considerável) você não vai ter como se responsabilizar. Em boa parte do tempo, a “coisa” é com ele, com o seu o filho, ou filha. Mesmo que você informe, aconselhe, ensine... No final das contas, a decisão foi, é, e sempre será dele. A não ser que você amarre... Bom, melhor não dar ideia. Deixa pra lá. 

Filhos não nascem “um livro com páginas em branco” como a maioria imagina. Quando passa pelo canal vaginal ou pelo corte da cesárea, ele já vem com pelo menos um trauma (a proporção desse trauma é que vai variar de um ser humano para outro) baseado na vivência uterina dele – tudo que ele experienciou e concluiu a partir do que sentiu sobre o que experienciou. Esse trauma vai determinar se ele será mais racional ou mais emocional, mais ou menos sociável, mais ou menos criativo, se ele vai ter mais ou menos medo de ser rejeitado, entre outras características. E até os 4 ou 5 anos seu filho irá passar por mais quatro traumas que irão definir não apenas como ele atuará no mundo, mas também que forma terá o corpo dele. E, não, você não terá nenhum controle sobre isso. 

Quando, no início do vídeo, Porchat pergunta “se eu não me reproduzo, quem eu sou?”, eu lembrei automaticamente da Abordagem Psicológica Sistêmica que coloca a reprodução de filhos como uma forma de dar continuidade a nossa família. Gerar filhos é o modo como preservamos a família, como damos continuação à vida. E que a forma mais saudável de fazer isso é melhorando, o quanto antes, a nós mesmos. 

O caso é que realizar o que nos propõe a Sistêmica envolve acreditar na vida na Terra. E acreditar na vida na Terra envolve acreditar que esta vida tenha sentido. E cada um de nós encontrará a sua forma de dar sentido à vida – ou não. E, para alguns, a vida só terá sentido sem filhos. Mas isso é outro tema. 

Ter filhos é sempre um dilema. Mesmo para os que planejam a chegada deles. Mas somos poucos os que nascemos planejados. Boa parte de nós foi uma surpresa para nossos pais. 

 

E, convenhamos, surpresas nem sempre são boas. 

 

Então, nossos pais reagiram como puderam diante da nossa chegada. E cada um de nós reagiu como pôde à reação de nossos pais (principalmente da mãe) a nossa repentina chegada. De alguma forma, nós sentimos se nossos pais ficaram tristes ou felizes, ou preocupados, ou inseguros e mesmo desesperados com a nossa chegada. 

 

O caso é que o modo como reagimos às reações de nossos pais não é de responsabilidade deles. 

 

Quando Emicida e Francisco falam que não gostavam de criança antes de terem seus próprios filhos, eu lembrei de mim mesma quando as pessoas me viam brincando com meu filho (e nós brincamos demais!!) e deduziam: “nossa, mas você gosta muito de criança, né?” E a minha resposta: “Não. Eu não gosto de criança. Eu gosto do meu filho”. 

E, assim como ocorreu com o Francisco, ter filhos (ou no meu caso, um filho) não me proporcionou gostar de crianças. Só que ampliou a minha consciência quanto a seriedade de se colocar um ser humano no mundo. Aliás, o meu pânico por ter filhos vinha exatamente disso, da opinião que eu tinha sobre ter filhos, ou seja, sobre o ato de criar um ser humano, que eu sempre vi como uma responsabilidade muito grande para a qual eu sempre tive certeza de não estar preparada. Tanto que eu estudei muito para poder criar o meu – eu li tudo que eu pude. O que não me isentou de erros. Na verdade, como pais, nós erramos muito tentando acertar. E errar é parte do processo. 

 

Quem não erra não acerta. Porque quem não erra é quem não faz nada. 

 

Quando o João Vicente fala dos medos dele, eu lembrei de todas as mudanças pelas quais o meu filho foi passando ao longo da existência dele que me fizeram pensar que eu fui mãe de várias “criaturas” tendo uma “criatura” só como filho. 

Eu digo isso porque nós vamos sofrendo mudanças ao longo da vida para nos tornarmos adultos e mesmo depois de nos tornamos adultos continuamos em mutação constante. Agora, uma coisa é VOCÊ ir mudando, “e(ou in)voluindo” no decorrer dos dias, dos anos, porque afinal você é você e você se acompanha, você se habita. Outra coisa completamente diferente é o “pedaço da sua alma que se fez carne e pôs-se no mundo” sofrendo mutações constantes embaixo do seu teto! Mano! Vamos combinar que é no mínimo frustrante você passar de um filho super carinhoso e companheiro (criança) a um troglodita bruto (adolescência) e estagnar numa criatura fria e distante que não te dá um telefonema nem no dia do seu aniversário, avalie no resto do ano. É foda! Vamos ser independentes, mas isso é o cume da racionalidade ou da “filhadaputice” mesmo. 

Daí você olha aquele ser e pensa: é meu filho. Ralei pra caramba pra criar, amei e demonstrei amor mais que a qualquer outra pessoa nessa vida. Dei atenção, carinho, dei o que eu nem podia e hoje, se eu não ligar, ele não me manda nem um “bom dia” pelo Whatsapp por vontade própria. 

E frustra. Frustra porque somos humanos e sendo humanos criamos expectativas. Portanto, é um engano acreditar que o amor que nós sentimos pelos filhos é incondicional. Mentira! Nós esperamos sim por alguma coisa, nem que seja por um mínimo de consideração. 

Eu digo consideração porque esperar amor de um filho é esperar demais. Somos nós que os amamos, porque a consciência de que eles são uma extensão de nós quem tem somos nós, pais e mães. O facto é que, ao ter um filho, você está se arriscando a no mínimo amar profundamente e “mover céus e terras” por um pedaço seu que talvez nem te admire... Porque ter um filho, como tudo nesse mundo dual, também tem dois lados. Então, muitas vezes vai ser maravilhoso. E muitas vezes vais desgarrador. Mas eu teria o meu de novo e de novo e quantas vezes fosse necessário. E por quê? Poderiam me perguntar os que não têm filhos... 

Bom, ter filho é estar brincando de esconde-esconde e escutar o “seu pedaço” de 1 ano e meio de idade perguntando: “vovó, voxê viu a minha mamãe? Me azude a pôculá-la? Eu não conxigo encontá-la!” Daí você sai do esconderijo com os olhos cheios d'água, completamente em êxtase por sua cria de 1 ano e meio conseguir fazer uso dos pronomes melhor que muito professor em sala de aula. 

Ou então, se deparar com um “pedaço seu” que, aos 3 anos, sem tirar o foco do quebra-cabeças, te pergunta: “pra onde nós vamos quando nós saímos daqui?” Sim, ele estava se referindo ao pós morte. E, sim, dá um “tilt” na sua cabeça porque aquele pedaço seu não apenas perguntou, ele quer uma resposta. E, assim, depois de discorrer um pouco sobre a explicação do pós morte na visão de várias culturas, aquele meu pedaço de 3 anos olha pra mim e solta: “Ninguém sabe, né? A gente vai ter que morrer pra saber”. 

Ter filho é estar tranquilo no quarto e, de repente, um "pedaço seu" de 4 anos e meio chega gritando: "Mamãe! Mamãe! Vem ver, vem ver!" Daí você sai em desespero esperando por qualquer coisa e então você se depara com seu filho sentado no chão diante da luz de uma lâmpada numa posição estranha. E, olhando a própria sombra, ele grita: "Olha! O Abaporu da Tarsila!" - ver foto no início da postagem. 

Ter um filho é ver o "seu pedaço" aos 7 anos querendo sair da escola para entrar na universidade. Ou ser surpreendido no dia de sua formatura pelo Coordenador da Universidade em pleno cerimonial dizendo que o "seu pedaço", então com 9 anos, merecia um certificado especial por ter frequentado a universidade quase tanto quanto você - inclusive fazendo alguns cursos livres. 

Ter um filho é ser chamado na escola para receber elogios. Ou ver uma professora vindo na sua direção só para agradecer a existência do "seu pedaço" no mundo. É vê-lo aos 15 anos como 1º colocado na seleção de uma escola super concorrida. É ser arrancado de uma provável depressão com apenas uma frase dita por ele. É vê-lo independente, morando sozinho e se sustentando aos 20 anos. 

 

Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria só para vivê-lo de novo... 

 

Enfim, por mais palavras que eu “destile” aqui, acredito que ninguém descreveu melhor que Vinicius o ato de ter um filho (Poema Enjoadinho). Ali ele explicou muito bem o amargo e o doce dessa missão que parece ser impossível... E, muitas vezes, vai parecer mesmo que é. Mas que, por mais difícil que seja, vai te proporcionar alegrias maiores que tudo que você possa ter vivido e vai te fazer descobrir que o amor pode mesmo não ter medidas. E quando ele crescer e for embora de casa, você vai lembrar que, como diria Gibran, filhos são flechas. Nós somos apenas os arqueiros... 

Talvez por isso eles se distanciem... Talvez por isso eles muitas vezes não voltem, porque flecha tem que ir mesmo é pra frente. Quem fica para trás somos nós que, com todo amor do mundo, as lançamos (talvez nem aí more a incondicionalidade, porque, quando eles se forem para viverem suas vidas, viverá em nós a expectativa da visita). 

 

Ao meu filho (meu leão iluminado, escorpiano cirúrgico, nascido no ano do dragão, meu filho com 27% do 3º trauma - Reich explica), com todo amor que eu lhe tenho, mas sem negar que também houve muita raiva.



































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PSICOTERAPEUTA E ANALISTA CORPORAL

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Psicoterapeuta Corporal Sistêmica, Especialista Internacional em Reprocessamento Emocional, Analista Corporal, Psicoeducadora Sistêmica, Psicoeducadora Biológica.

Por onde andei...

Por onde andei eu descobri que onde vivo vai depender muito de onde meus elétrons reapareçam. Em segundos eu posso aparecer aí na sua sala e te dizer como você funcionaria melhor nessa vida só olhando o formato do seu corpo. Descobri que a felicidade é um momento vivido sem possibilidade de retorno. O máximo que você pode fazer é aproveitá-lo e esperar pelo próximo, que será totalmente diferente do último e do penúltimo e do antepenúltimo. Aprendi a admitir que tenho um vício incurável: a solidão. Então, de vez em quando eu faço uso de uma boa dose dela para viver melhor. Entendi que tenho uma paixão que não cede lugar: a Palavra. Um sentimento que, desde que existo, seja de que modo for, só tem aumentado: o surpreendimento com o ser humano. Um desejo que me inflama a alma: saber como e por que a humanidade foi criada e por que ela não pôde e continua não podendo saber a resposta. E uma única certeza: não há certeza sobre nada.